
De início não damos conta de nada, estamos convencidos de que a couraça ainda nos envolve totalmente, até que um dia, inesperadamente, por uma lembrança estúpida, sem sabermos porquê, damos por nós a chorar como umas crianças.
Por isso, quando digo que entre mim e ti se intrometeu uma diferença natural, é precisamente isso que quero dizer. Na época em que a minha couraça começou a formar-se, a tua já estava feita em farrapos. Tu não suportavas as minhas lágrimas de criança, e eu não suportava a tua inesperada dureza. Vivia escondida em buracos, e embora estivesse preparada para o facto de o teu temperamento mudar com a adolescência, quando essa mudança ocorreu foi-me muito difícil suportá-la. De repente, havia uma pessoa nova diante de mim e eu já não sabia como devia tratar essa pessoa. À noite, na cama, no momento de pensar na mãe, sentia-me feliz com os teus afagos, e com o que se estava a passar contigo. Eu sabia que me amavas.
Mas, de manhã, quando me batias por tudo e por nada, que depressão, que vontade de chorar!
Era criança não tinha culpa dos teus males, não conseguia encontrar em parte alguma a energia necessária para te fazer frente. E pensava, se um dia chegasses aos oitenta anos, eu me vingava da tua crueldade. Infelismente morreste perto dos cinquenta, e foi ai que eu soube quanto te amava também. Em todos os dias da minha vida recordo a tua beleza física mas, também o teu coração de pedra. Se chegasses aos oitenta anos, compreenderias que, nessa idade, as pessoas sentem-se como folhas em finais de Setembro. E assim saboriavas o teu castigo, por me bateres e me chamares Doninha. Para mim, o vento eras tu, a vitalidade conflituosa da tua adolescência. Alguma vez te apercebeste disso, minha querida? Vivemos na mesma árvore, mas em estações tão diferentes.
Lembro-me do dia da tua partida para a Suiça. Estávamos muito nervosas, não estávamos? Tu não quizeste que eu fosse contigo ao aeroporto, e a cada coisa que eu te dizia para levar, respondias: Vou para a Suiça, não vou para o deserto. À porta, quando te gritei com a minha voz odiosamente estridente: Tem cuidado contigo, sem sequer te voltares, despediste-te, dizendo: Deixa esse gajo e trata da minha rosa, e vai ter comigo.
Na altura, sabes, fiquei um tanto desiludida com essa despedida. Como sentimental que sou, esperava uma coisa diferente e mais banal, um beijo ou uma frase afectuosa. Só à noite, quando, sem conseguir adormecer, andava de roupão pela casa vazia, é que percebi que tratar da rosa queria dizer cuidar daquela parte de ti que continua a viver junto de mim, a parte feliz de ti.
E percebi que, na secura daquela ordem, não havia insensibilidade, mas a tensão extrema de uma pessoa que está quase a chorar. É a couraça de que falava no início do texto. Lembras-te do que eu te dizia nos últimos tempos em Luanda? As lágrimas que não saem depositam-se no coração, com o passar do tempo vão formando uma crosta e paralisam-no, como o calcário se encrosta e paralisa as engrenagens da máquina de lavar.
Bem sei que os meus exemplos extraídos do universo da cozinha, só te faziam rir e chamando-me de Doninha. Eu respondia...Tem paciência: cada pessoa vai buscar inspiração ao mundo que conhece melhor.
Sabes, ontem à noite, enquanto estava a ler sentada no cadeirão, ouvi de repente no quarto um ruído compassado, ergui a cabeça do livro e vi a tua imagem que sorria para mim. É a saudade. Até breve mana.