segunda-feira, março 12, 2007

Primavera

A Primavera deste ano chegou de repente. Ontem o tempo estava maravilhoso, fui até ao Bombarral, seguindo para Peniche, estava tão radiante que, durante a viagem, não consegui estar calada um instante, pela janela via a mesma paisagem que tinha visto à tempos anteriores, mas tudo parecia diferente.
Tenho estado doente vai pra três semanas, nestas três semanas penso mais e mais profundamente do que quando estou a trabalhar.
A semana passada fui sózinha até Sintra, ao passear pelo miradouro do Palácio, pensei que o mais bonito seria morrer nesse instante. Parece estranho, mas a felicidade suprema, tráz sempre consigo este desejo contraditório. Eu estava feliz nesse dia.
Olhei a beleza do Palácio, e nesse instante, tinha a sensação de que estava a caminhar há muito tempo, de que tinha andado durante anos e anos por caminhos escalavrados, pelo matagal; para seguir em frente abrira à paulada uma estreita passagem, avançara e não vira nada do que me rodeava - PARA ALÉM DO QUE ESTAVA DIANTE DOS MEUS PÉS -; Não sabia para onde ia, podia haver um abismo à minha frente, um precipício, uma vila ou o deserto; depois, de repente, o matagal abrira-se, sem reparar tinha subido. Estava em cimo de um monte, o Sol tinha nascido há pouco e à minha frente, com matizes diversos, outros montes desciam para o horizonte; era tudo azul, uma brisa ligeira roçava pelo cume do monte, pelo cume do monte e pela minha cabeça, pela minha cabeça e pelos meus pensamentos. De vez em quando, ouvia-se um rumor lá em baixo, o ladrar de um cão, o sino da igreja. Tudo era ao mesmo tempo leve e intenso. Dentro e fora de mim tudo se tinha tornado claro, já nada se sobrepunha, já nada se interpunha, já não me apetecia descer, embrenhar-me no matagal; queria mergulhar em todo aquele azul e ali ficar para sempre, deixar a vida no seu momento mais sublime. Foi o que pensei até tarde, até ao momento de voltar a encontrar-me com Conceição. No entanto, depois fui para casa. Durante o jantar, não tive coragem para dizer-lhe, tinha medo que ele desatasse a rir. Só já noite avançada, quando ele perguntou o que eu tinha, quando chegou e me abraçou, é que aproximei a boca do seu ouvido para contar-lhe. Queria dizer-lhe: Quero morrer. Contudo, sei o que lhe disse? Não tenho sono.

domingo, março 04, 2007

Tantos anos

A dor tem vida própria e só o tempo e a generosidade da existência a podem apagar.
Já passaram tantos anos e não sei se o tempo curou a minha tristeza, mas quero acreditar que sim, que o passado não me pode prender, que somos mais fortes do que as nossas desilusões.

Poucas pessoas tiveram na vida tanta companhia como eu; fui criada em colégios internos, ainda hoje tenho os melhores amigos do mundo que me ajudam a pensar, a lamber as feridas, a escolher novos caminhos e a crescer. Mas penso demasiado em tudo, tenho sempre coisas para dizer aos outros e sei que os outros nem sempre têm tempo ou paciência para me ouvir.
Temo que todas as palavras que escrevo não passem de fragmentos de uma confissão. Fico sempre com a sensação que falta o essencial, que o mais importante ficou por dizer.
Preciso de me sentar todos os dias ao computador e escrever, quaze compulsivamente, mesmo que não tenha um livro em mãos. Habituei-me à companhia das palavras, ao silêncio da casa, ao olhar Sintra da minha janela, aos meus discos de música clássica, únicos intrusos admitidos nos momentos de peregrinação interior, que é afinal o que tento fazer quando estou a trabalhar. Não é vontade, é necessidade. É por isso que os músicos tocam, que os pintores pintam, que os escultores esculpem, que os atletas correm: porque precisam. E eu, em criança metia conversa com toda a gente, eu falo com as árvores e com as pedras da rua, preciso de me fechar todos os dias e escrever.
Há muitos anos que não me acontecia isto, pelo menos de uma forma tão intensa e inequívoca. Talvez a minha visão seja demasiado poética, exagerada, mas a vida é isto mesmo, ou se vive sem limites, ou então não vale a pena.
Se calhar sou doida, sofro da mais antiga enfermidade do ser humano e que ainda nenhum cientista se lembrou de diagnosticar, estudar e classificar como patologia: Não sei viver com gente fingida, preciso que me amem, para viver sem me deixar engolir pela realidade, sem sentir que estou a lutar para me manter à tona.
Não sei que espécie de caminhante sou, para onde vou, não sei. Sei que há uma força estranha que me faz correr, para onde não devo.

quinta-feira, março 01, 2007

PESO

O peso da noite é o peso das perguntas que não têm resposta. A noite é dos doentes, dos inquietos, não há forma de nos libertarmos da nossa tirania. Pode-se acender uma luz, abrir um livro, procurar na rádio uma voz reconfortante, mas a noite continua ali, à espreita: viemos do escuro, ao escuro voltaremos e escuro era o espaço antes de o universo ganhar forma.
Talvez seja por isso que as cidades estão cada vez mais iluminadas e cheias de atracções: a qualquer hora da noite, se quizermos, podemos comer, comprar alguma coisa, divertirmo-nos.
O silêncio e a escuridão são relegados para as poucas horas em que estamos esvaídos de cansaço e temos de tentar recuperar forças para continuar, mas não é um sono sulcado pelo fulgor das perguntas, é um desfalecimento, isso sim, o espaço breve em que o corpo é obrigado a ceder à fisiologia, para depois despertar diante dum ecrã luminoso, com um telecomando manejado sempre por nós.
Em que acreditas?, perguntara-me o Manuel. No silêncio da noite, dava voltas e mais voltas na cama, as dores eram muitas, sem conseguir sossegar.
Sabia que o sono não iria chegar, mas esperava ao menos por uma espécie de modorra. Em vão aquela pergunta pairava no ar,arrastando consigo muitas outras, e a primeira de todas era a sua irmã gémea: porque vives?
Em que acreditas? Porque vives? A cada criança que nasce deveria ser entregue um pergaminho com estas duas perguntas em pé de página, deixando por cima o espaço suficiente para o tempo que lhes é dado viver. Depois, teríamos de nos apresentar com essa mesma folha - preenchida com todas as acções da nossa vida - diante da morte.
De facto, eliminando a noite be o silêncio, deixa de haver espaço para as perguntas - e é essa a função do pergaminho: para que cada criança que nasça não pense que é apenas um objecto entre outros objectos, e até o mais perfeito; para que saiba ( se, ao longo dos anos, passar por acaso uma noite sem dormir) que o que a mantém acordada não é nenhuma doença, mas a sua natureza, porque a capacidade de se interrogar é própria do homem e de ninguém mais.
Em que é que acreditas?
Há dor, não alegria nas minhas primeiras recordações; há ansiedade, medo, não a serena certeza da pertença. Enquanto gatinhava à procura da minha mãe por entre aqueles corpos aturdidos pelos excessos, enquanto a via dormir ao lado de um marido a quem eu chamava pai, que podia eu sentir senão confusão?
Já então intuía que não era filha do casamento, mas do amor fora dele, e essa percepção, em vez de me empurrar para a aversão. fazia nascer en mim um estranho desejo de proteger a minha nãe; lia sempre um véu de tristeza por baixo da sua alegria forçada, sentia que ela comrçava andar à deriva e daria a minha vida para evitar que isso acontecesse.
De onde veio a minha alma?, pergunto a mim mesma: ter-se-á formado comigo, ou terá brotado do mistério do tempo fora para poder socorrer um corpo que levianamente a atraiu a si, condenando-a a viver a dor da não aceitação, na inquietação do lugar nenhum, do não importa, por quê, por quem estou aqui?, como dissera o meu pai, já que tudo se reproduz inexoravelmente, desde os bolores até aos elefantes?
Seria, portanto, filha da inexorabilidade?