quinta-feira, março 01, 2007

PESO

O peso da noite é o peso das perguntas que não têm resposta. A noite é dos doentes, dos inquietos, não há forma de nos libertarmos da nossa tirania. Pode-se acender uma luz, abrir um livro, procurar na rádio uma voz reconfortante, mas a noite continua ali, à espreita: viemos do escuro, ao escuro voltaremos e escuro era o espaço antes de o universo ganhar forma.
Talvez seja por isso que as cidades estão cada vez mais iluminadas e cheias de atracções: a qualquer hora da noite, se quizermos, podemos comer, comprar alguma coisa, divertirmo-nos.
O silêncio e a escuridão são relegados para as poucas horas em que estamos esvaídos de cansaço e temos de tentar recuperar forças para continuar, mas não é um sono sulcado pelo fulgor das perguntas, é um desfalecimento, isso sim, o espaço breve em que o corpo é obrigado a ceder à fisiologia, para depois despertar diante dum ecrã luminoso, com um telecomando manejado sempre por nós.
Em que acreditas?, perguntara-me o Manuel. No silêncio da noite, dava voltas e mais voltas na cama, as dores eram muitas, sem conseguir sossegar.
Sabia que o sono não iria chegar, mas esperava ao menos por uma espécie de modorra. Em vão aquela pergunta pairava no ar,arrastando consigo muitas outras, e a primeira de todas era a sua irmã gémea: porque vives?
Em que acreditas? Porque vives? A cada criança que nasce deveria ser entregue um pergaminho com estas duas perguntas em pé de página, deixando por cima o espaço suficiente para o tempo que lhes é dado viver. Depois, teríamos de nos apresentar com essa mesma folha - preenchida com todas as acções da nossa vida - diante da morte.
De facto, eliminando a noite be o silêncio, deixa de haver espaço para as perguntas - e é essa a função do pergaminho: para que cada criança que nasça não pense que é apenas um objecto entre outros objectos, e até o mais perfeito; para que saiba ( se, ao longo dos anos, passar por acaso uma noite sem dormir) que o que a mantém acordada não é nenhuma doença, mas a sua natureza, porque a capacidade de se interrogar é própria do homem e de ninguém mais.
Em que é que acreditas?
Há dor, não alegria nas minhas primeiras recordações; há ansiedade, medo, não a serena certeza da pertença. Enquanto gatinhava à procura da minha mãe por entre aqueles corpos aturdidos pelos excessos, enquanto a via dormir ao lado de um marido a quem eu chamava pai, que podia eu sentir senão confusão?
Já então intuía que não era filha do casamento, mas do amor fora dele, e essa percepção, em vez de me empurrar para a aversão. fazia nascer en mim um estranho desejo de proteger a minha nãe; lia sempre um véu de tristeza por baixo da sua alegria forçada, sentia que ela comrçava andar à deriva e daria a minha vida para evitar que isso acontecesse.
De onde veio a minha alma?, pergunto a mim mesma: ter-se-á formado comigo, ou terá brotado do mistério do tempo fora para poder socorrer um corpo que levianamente a atraiu a si, condenando-a a viver a dor da não aceitação, na inquietação do lugar nenhum, do não importa, por quê, por quem estou aqui?, como dissera o meu pai, já que tudo se reproduz inexoravelmente, desde os bolores até aos elefantes?
Seria, portanto, filha da inexorabilidade?

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