terça-feira, janeiro 15, 2008

Antepassados

Que escolhas fizeram os nossos antepassados? Que fardos tiveram de carregar? E porquê tanta diferença nos pesos? Porque hà quem corre, leve como uma pena, e quem pelo contrário, não consegue sair do chão?

Foi com estes pensamentos que subi de novo ao sótão, ou seja arrecadação. O Sol de inverno já não aquecia o ar e, para não gelar, fechei a janelinha que dava para o telhado, onde via Sintra. Sentei-me de pernas cruzadas diante da mala aberta: não ficara lá grande coisa, algumas cartas poeirentas e um caderno do Fábio de aspecto mais recente abandonados. Eram os últimos vestígios. Para onde me levariam aquelas folhas de papel?
Tinha medo de ficar desiludida, se calhar não passavam de um maço de cartas banais, enviadas por pessoas quaisquer...algo começou a fazer efeito. Um simples postal dizia...regressamos na quinta-feira, no comboio das oito.
Levei-as para casa e coloquei-as em fila sobre a mesa da cozinha, mas já era tarde: como não me apetecia abri-las, ontem no final do dia, decidi esperar pela luz desta tarde cinzenta. Sentei-me na sala, incomodada com a música dos meus vizinhos do lado, não conseguia ler, nem escrever, só às quatro da tarde é que o silêncio caiu sobre o planalto de Sintra, quebrado aqui e ali pelo rouco de alguns camiões. Mais ao longe, ouvia-se o apito dos comboios de Meleças, pareciam estar a dar um pequeno concerto sob a neblina leve do inverno.
Que música será esta?, pensei, será a sinfonia da partida ou do regresso?

Na capa do caderno, uma paisagem de Inverno: em primeiro plano, as pegadas de um lobo na neve; ao centro, árvores com os ramos totalmente cobertos de neve; em fundo, fechando o horizonte - por baixo de um céu claro e luminoso - , uma cadeia montanhosa cintilante de gelo. Era um simples caderno para as contas das despezas domésticas. Talvez tenha sido por isso que o abri com ligeireza. Uma ligeireza que se transformou em gelo, mal vi a letra, e a quem pertencia. Lembrei-me de repente...aquele caderno foi-me dado pela minha tia Victória, irmã da minha mãe. Na primeira página, estava escrito: Poemas. Não me tinha sentido embaraçada ao folhear o caderno, nem ao ler a carta que ela escrevera pelo Natal, ao meu pai para Lisboa mas, diante daquele caderno, sentia-me perturbada e intimidada; nunca imaginara que minha mãe tivesse uma veia poética. Havia muitos poemas - uns curtos, outros muito longos. Li alguns, folheando ao acaso.


Medo

Não são os monstros que me metem medo.
Nem os assassinos.
Não tenho medo da noite.
Nem de aluviões ou cataclismos.
Nem dos castigos ou da morte.
Nem de um amor que não existe.
Só tenho medo.
Da tua mão minúscula Luisinha.
À procura da minha.
Do teu olhar terno.
Perguntando. Porquê?

Cândida

Toldou-me a vista, senti um aperto no peito: era como uma haste, um daqueles pauzinhos afiados que servem para matar os vampiros. A mão de alguém estava a empurrá-la com toda a força, trespassando-me a caixa torácica. O pauzinho enterrou-se mais um pouco, penetrando no diafragma, bastava desviar-se ligeiramente para a esquerda e perfurar-me-ia o pericárdio.
Aquela era a minha mãe.

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