segunda-feira, agosto 13, 2007

Silêncio

O teu olhar chega primeiro mas o teu coração demora-se, porque, apesar do silêncio e da distância, agora real outra vez, ficas ainda por aí, espalhado pelos lugares por onde passeámos.
Nada guarda memória mais certa e fiel do que a minha da tua pele, por isso vais ficando no cheiro, no eco da voz, no sabor da boca, no toque dos dedos nas costas da mão, no olhar calado e fixo, atento e preso, muito mais eloquente que mil poemas de amor.
Não voltarei, e até ao fím dos nossos dias, ficamos os dois a pensar como é que somos suficientemente loucos para viver uma possibilidade e suficientemente sensatos para não sofrer com ela. Eu tento ter mais sorte, porque vou meia dúzia de voltas à frente: Já sei onde é mimha casa e já encontrei minha missão na terra. Tu procuras ainda muitos caminhos, por isso ainda não podes escolher nenhum. Gostava que a tua casa fosse meu coração. Se assim fosse, saberias sempre o caminho de volta, mesmo que o teu espírito de nómada e fugidio te levasse para os armários da casa de banho, ou almoçar com os amigos, ou para as ilhas Gregas e todos os lugares do mundo que queres tocar. Mas a minha morada é sempre a última.
Gostava que a tua casa fosse o meu coração, como um botão que encontrou o seu lugar, porque a nossa casa é o único lugar do mundo onde podemos descansar, onde nos compreendem mesmo quando nós não nos conseguimos perceber.
A nossa casa é onde ninguém faz barulho quando estamos a dormir e ninguem nos acorda a meio da noite. Não tenho portas blindadas nem uma estrutura à prova de sismos, mas o meu sistema de aquecimento central é o melhor do mundo e acredita que nunca, mas nunca mais, te irias sentir sózinho ou perdido.
Apetecia-me inundar a tua vida de sonhos, apetecia-me cobrir-te de palavras com sentido, e outros presentes que te enchessem de mim, mas controlei-me como pude, porque já aprendi que não podemos dar mais aos outros do que eles estão habituados a receber. Sabes como sou impetuosa, voluntariosa, impulsiva. Sabes como luto pelo que sonho, como me dedico a tudo aquilo em que acredito. E isso faz com que tenhas medo de mim. Sou demasiado directa, damasiado óbvia, só aguento o jogo da sedução logo no ínicio. Depois a rotina e tudo mais cansa-me e avanço sem estratégia. Todas as mulheres, por mais seguras e maduras que sejam; precisam, acima de tudo, de se sentirem amadas. Acima do respeito, do reconhecimento, da estima e da amizade, elas precisam de sentir amor.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Quinta da Letrada

Pela manhã, ouvia a música que vinha do fundo da minha solidão. A quinta chamando-me sempre. É quaze uma música aquática, arestas de sangue, medrosos dedos tamborilando nos vidros poeirentos. Teu nome, este som frio de árvores esfacelando a cal das paredes. Escrevo com o medo e o susto dentro de cada palavra. A vida atinge a espiral vertiginosa do dia. É esta palavra que me serve para nomear e não outra: medo.
Os textos progridem com a desolação dos meus sentimentos feridos, e com a desolação da casa, latejam sobre o computador, doem-me os dedos e os olhos, e o meu coração desgasto pela dor, pela doença.
A casa foi abandonada, permanece vazia, duma janela avista-se outra janela. O interior é húmido e escuro. Onde uma porta enquadra outra porta não se pressentem mais sinais de vida. Apenas flutuam aromas, presenças ténues de corpos. O olhar demora-se sobre as geometrias musgosas dos tectos, uma sombra desliza junto ao quarto que foi dela, o estuque esfarela-se, cai. Ouve-se um rumor misterioso de poços, de insectos por dentro das paredes, o olhar aprende a ver na penunbra esverdeada das salas. Apura-se o ouvido e o tacto quaze consegue delinear a presença dos mortos, perco o medo, caminho de quarto em quarto. Consigo chegar à porta do quarto de infância, abroa. Alguém fotografa alguem, o espelho acende o meu reflexo. Não me reconheço nele, existe uma saída secreta que eu utilizava. Cresci com a casa, a infância desapareceu num recanto quaze inacessível da memória. Nada resta da travessia alegre dos corpos que nela viveram, nem mesmo se encontram sulcos de chuva nos soalhos alongados, lavados com sabão amarelo. Nem ossos de alguma ave que tenha servido de alimento, nem cinza ou pedaços de carvão, restos de gordura, nada. A luz continua a entrar pelas frestas das janelas mal fechadas. A desolação insinua-se até à medula das madeiras. O meu olhar triste e choroso escolhe algumas imagens da casa, únicos sinais guardados na meticulosa memória de quem com ela viveu. Continuei o meu caminho, o silêncio e as sombras deslizam à minha volta. Espreitam por cima do meu ombro para verem os meus rascunhos.

quinta-feira, agosto 09, 2007

Dispersos de Milfontes/ 1978/79

Outras feridas.
traços de répteis incandescentes pelas dunas, hastes quebradas, excrementos sinalizando com rigor apertados caminhos. Areias de cor indecisa.
São bons estes lugares de cinza, para a solidão insuspeita dos pássaros. Da boca das areias desmonorando-se irrompem fosforosos bichos, adocicados corpos, um rosto de fogo encima o leite vagaroso das nuvens, depois, ouvem-se os nomes dos barcos, e do vento uma voz explode, fende, desfaz a tempestade, teu corpo acalma por cima do misterioso espelho, mão na mão, percorremos todas as águas, conhecemos os domínios húmidos dos monstros marinhos e a loucura dos peixes cegos, que deu nome à nossa amizade e às cidades costeiras. Outras feridas alastram subitamente no fulcro da memória outras noites atravessam-me. Semeiam pelo corpo flores e pânico. Falo com os barcos postos-a-seco, das salivas marinhas cresce uma quilha enfurecida, a escrita é um marulhar incessante, imito a paisagem como se imitasse, ou te escrevesse.
Teu rosto dilui-se nos ossos da página, contamina as cartilagens das sílabas, resta-me o fingimento sibilante das palavras. Caminho pelo interior das dunas, apago o rasto de tinta acetinada, sou terra sem texto onde não encontro água. Só noite e um rumor imperceptível no coração. Mais nada.

quinta-feira, agosto 02, 2007

Pouco mais há a dizer

Pouco mais há a dizer.Caminho largando os últimos resíduos da memória. Fragmentos de noite escritos com o coração a pressentir as catástrofes do mundo. A grande solidão é um lugar branco povoado de mitos, de tristezas e de alegrias. Mas estou quaze sempre triste. Vejo algumas fotografias minhas do passado, revelam-me que noutros lugares já estivera triste. Por exemplo, no fundo deste poço vi inclinar-se a sombra adolescente que fui.Água lunar, canaviais, luminosos escaravelhos. Este sol queimando a pele das plantas. Caminho pelos textos e reparo em tudo isto. O que começo deixo inacabado, como deixarei a vida, tenho a certeza, inacabada. O mundo pertenceu-me, a memória revela-me essa herança, esse bem . Hoje, apenas sinto o vento reacender feridas, nada possuo, nem sequer sofrimento. Outra memória vai tomando forma, assusta-me, ainda quaze nada aconteceu e já envelheci um pouco. Um jogo de estilhaços é tudo o que possuo, a memória que vem ainda não tem a dor dentro dela. As fotografias e os textos, teu rosto, poderiam projectar-me para um futuro mais feliz, ou contarem-me os desastres dos recomeçados regressos. Mas, quando mais tarde conseguir reparar que a vida vibrou em mim. Um instante, terei a certeza de que nada daquilo me pertenceu. Nem mesmo a vida, nenhuma morte. na mesma posição, reclinada sobre o meu frágil corpo, recomeço a escrever. Estou de novo ocupada em esquecer-me. A escrita é precária morada para o vaguear do coração. Resta-me a perturbação de ter atravessado os dias, humildemente, sem queixumes. Anoitece ou amanhece, tanto faz.