sexta-feira, agosto 10, 2007

Quinta da Letrada

Pela manhã, ouvia a música que vinha do fundo da minha solidão. A quinta chamando-me sempre. É quaze uma música aquática, arestas de sangue, medrosos dedos tamborilando nos vidros poeirentos. Teu nome, este som frio de árvores esfacelando a cal das paredes. Escrevo com o medo e o susto dentro de cada palavra. A vida atinge a espiral vertiginosa do dia. É esta palavra que me serve para nomear e não outra: medo.
Os textos progridem com a desolação dos meus sentimentos feridos, e com a desolação da casa, latejam sobre o computador, doem-me os dedos e os olhos, e o meu coração desgasto pela dor, pela doença.
A casa foi abandonada, permanece vazia, duma janela avista-se outra janela. O interior é húmido e escuro. Onde uma porta enquadra outra porta não se pressentem mais sinais de vida. Apenas flutuam aromas, presenças ténues de corpos. O olhar demora-se sobre as geometrias musgosas dos tectos, uma sombra desliza junto ao quarto que foi dela, o estuque esfarela-se, cai. Ouve-se um rumor misterioso de poços, de insectos por dentro das paredes, o olhar aprende a ver na penunbra esverdeada das salas. Apura-se o ouvido e o tacto quaze consegue delinear a presença dos mortos, perco o medo, caminho de quarto em quarto. Consigo chegar à porta do quarto de infância, abroa. Alguém fotografa alguem, o espelho acende o meu reflexo. Não me reconheço nele, existe uma saída secreta que eu utilizava. Cresci com a casa, a infância desapareceu num recanto quaze inacessível da memória. Nada resta da travessia alegre dos corpos que nela viveram, nem mesmo se encontram sulcos de chuva nos soalhos alongados, lavados com sabão amarelo. Nem ossos de alguma ave que tenha servido de alimento, nem cinza ou pedaços de carvão, restos de gordura, nada. A luz continua a entrar pelas frestas das janelas mal fechadas. A desolação insinua-se até à medula das madeiras. O meu olhar triste e choroso escolhe algumas imagens da casa, únicos sinais guardados na meticulosa memória de quem com ela viveu. Continuei o meu caminho, o silêncio e as sombras deslizam à minha volta. Espreitam por cima do meu ombro para verem os meus rascunhos.

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