Todavia, em Setembro, já eu tinha reparado que a farda me ficava toda a dançar, decidi ir ao médico. E do médico para o hospital de S.José foi um salto, um vírus instalara-se nos alvéolos, onde se reproduzira alegremente: uma pneumonia sem febre, sem tosse, mas não menos capaz de matar.
O tempo que passei no hospital não foi um período infeliz, havia sempre alguém a tratar de mim e a distrair-me sem nunca me obrigar a sair da cama. Travei amizade com duas senhoras do hospital, quando me visitavam juntamente com o Padre Fausto: estavam muito surpreendidas por nunca ninguém me ir vesitar. No dia em que saí trocamos moradas, promessas de voltarmos a ver-nos.
Era uma segunda semana de Outubro, eu andava pela cerca como em sonhos, a violência dos ruídos e dos movimentos atordoava-me, os meus passos eram frágeis, hesitantes.
No jardim, a minha roseira tinha florido - uma flor pequena, raquítica, já pronta para enfrentar o frio do inverno -, as folhas das árvores começava a amarelecer e na tigela do benfica, cheia de água, boiavam os cadáveres de algumas vespas e de um zângão. Bastara um mês de ausência para que o cheiro a mofo e a humidade invadissem a camarata.
O outono estava diante de mim, e, à minha volta, o vazio.
Já sentia o vento sul a enrrodilhar-se para lá das Serras, ouvia-o descer, prender-me no seu assobio e penetrar até aos ossos do crânio.
Não aguentava passar ali mais um Inverno, tinha de fugir. Parecia-me que tinha vivido vinte anos em dois anos, estava cansada de mais para continuar.
Na verdade, sabia que não seriam opções, mas fugas, sumiços, testos mal pousados em cima de uma panela. Uma parte de mim estaria ali a interpretar a ficção e a outra continuaria a andar pelo mundo, percorrendo as ruas com os passos meio vazios de Évora. Afogar-se-ia em todos os abismos, em todas as escuridões; esperaria com humildade confiante diante de todas as portas abertas, como um cão à espera de um dono que ainda não conhece.
Queria luz, esplendor.
Queria descobrir se a verdade existe, se é ela o eixo à volta do qual tudo gira como um caleidoscópio, ou então morrer.
Ao voltar para dentro, reparei que andava com mais ligeireza, a decisão de fugir fazia-me olhar para tudo com indiferença, quaze com nostalgia.
- Se as folhas caem - dizia eu - , tem de haver uma razão, a Natureza não é estúpida como os homens, e aquilo a que chamas ervas daninhas não sabem o que são; eu é que as julgo e as condeno, mas elas acham que são flores e ervas, tão bonitas e importantes como as outras todas.
Eu não vejo a alma do jardim, gritei um dia, furiosa, não vejo a alma de nada de nada!
Nos últimos dois dias, arrumei meticulosamente num saco algumas roupas e a escova de dentes; por cima de tudo, coloquei a velha Bíblia sem capa que me deram na Igreja.Por cima de mim, brilhavam as estrelas, as mesmas que, há alguns anos, tinham velado pela viagem da minha mãe. Será que as estrelas têm olhos , pensava, será que me vêem como nós as vemos a elas, será que têm um coração misterioso - podem influenciar os nossos actos.
Quando era miúda, antes de ir para a cama, insistia em ir à janela dar as boas noites à minha mãe que, segundo me tinham dito, fora viver lá para cima; se as nuvens, em certas noites, cobriam o céu, desatava a soluçar. Imaginava-a como uma fada de vestido comprido e leve de chiffon colorido, na cabeça trazia um cone luminoso, coberto por estrelinhas, tinha um rosto sereno, levemente divertido, e, em vez de pernas, via-se uma única esteira luminosa: Só assim me podia seguir, esvoaçando de estrela em estrela.
Será por isso que a minha alma se parece com a de um cão?
Será por isso que, desde sempre ando pela estrada da vida à mercê da inquietação feroz dos que não têm dono?
segunda-feira, março 03, 2008
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