quarta-feira, julho 06, 2005

SENTIMENTO

Para não ceder a sentimentos, refugiei-me num mundo muito meu. À noite, na cama escondendo a luz com um pano, escrevia histórias até altas horas. Gostava muito de fantasiar. Durante algum tempo, sonhei que era pirata, vivia no mar da China e era um pirata muito especial, porque não roubava para mim, mas para dar tudo aos pobres. Das fantasias com bandidos passava para as filantrópicas, pensava em licenciar-me em medicina e partir para África, para tratar dos pretinhos. Aos catorze anos, li a biografia de schliemann e percebi que nunca poderia tratar das pessoas, porque a minha única e verdadeira paixão era a arqueologia. De todas as infínitas actividades que imaginei vir a exercer, creio que essa era a única verdadeiramente minha.
Existirá uma fresta por onde possamos libertar-nos do destino que nos é imposto pelo ambiente de origem, de tudo o que os nossos antepassados nos transmitiram pela via do sangue? Talvez. Quem sabe se, a certa altura, alguém não consegue entrever, na sequência claustrofóbica das gerações, um degrau mais alto e com todas as suas forças tentar lá chegar? Quebrar um anel, fazer entrar no quarto um ar diferente, aí teremos o minúsculo segredo do ciclo das vidas. Minúsculo , mas muito fatigante, terrível pela sua incerteza.
Assim, cresci com a sensação de que era algo semelhante a uma macaca que devia ser bem domesticada e não um ser humano, uma pessoa, com as suas alegrias, os seus desânimos, a sua necessidade de ser amada, uma solidão que com o passar dos anos se foi tornando enorme, uma espécie de vácuo onde eu me movia com os gestos lentos e desajeitados de um mergulhador. A solidão também nascia das perguntas, das perguntas que fazia a mim mesma e às quais não sabia responder. Já aos quatro, cinco anos olhava à minha volta e pensava: Porque estou eu aqui? Donde é que vim, de onde vêm todas as coisas que vejo à minha volta, o que há atrás delas, terão estado sempre aqui, mesmo quando eu não estava, estarão sempre? Fazia a mim própria todas as perguntas que fazem as crianças sensíveis quando começam a tomar consciência da complexidade do mundo. Assim foi aumentando a sensação de solidão, para resolver todos os enigmas só podia contar com as minhas forças. Quanto mais o tempo ia passando, mais perguntas fazia acerca de tudo, eram perguntas cada vez maiores, cada vez mais terríveis, ficava aterrorizada só de pensar nelas. Por volta dos seis anos tive o primeiro encontro com a morte.

1 comentário:

Anónimo disse...

Não gosto do que acabei de ler. Não pelo texto, mas pelo estado de espirito que demonstra. Fala, desabafa, mas não fiques assim.