sexta-feira, outubro 28, 2005

JAMOR

Os meus passeios duraram pouco mais de um ano, de um dia para o outro deixei de ir a suas casas. Depois desses passeios voltava para casa cada vez mais confusa, mais incerta. Era desagradável, ir aquele lugar onde a fome e a miséria abundava. Casas de lama, crianças com fome, e nos seus olhares não existia a esperança. Estava no ano de 1978, tinha percorrido o meu caminho interior, mas era um caminho limitado ao conhecimento de mim mesma. Bairro Jamor.
Nesse caminho encontrei-me a certa altura diante de um muro, sabia que para lá desse muro o caminho continuava, mais luminoso e mais largo, mas não sabia como fazer para o transpor.
Um dia, durante um aguaceiro inesperado, abriguei-me dentro duma barraca de lata " Como se faz para ter fé", perguntei para dentro de mim. Não se faz nada acontece. Eu já tinha fé, mas a minha emoção e dor, impedia-me de o admitir, fazia demasiadas perguntas a mim mesma, complicava o que era simples. Na realidade, só havia um medo tremendo. Deixei-me levar, o que tiver de vir, virá.
Se havia misticismo na minha personalidade, era um misticismo muito concreto, agarrada às coisas de todos os dias. Estar aqui , agora, repetia-se sempre. O reino de Deus está dentro de nós, esta frase já me tinha impressionado quando vivia no colégio como aluna infeliz.
Nessa altura, fechando os olhos, deslizando com o olhar para dentro de mim, não conseguia ver nada. Depois do encontro com o padre Thomás, algo tinha mudado, continuava a não ver nada, mas já não era a cegueira total, no fundo da escuridão começava a haver um clarão, de vez em quando, por brevíssimos instantes, conseguia esquecer-me de mim mesma. Era uma luz pequena, débil, uma chamazinha apenas, bastaria um sopro para a apagar.Todavia, o facto de existir e de assistir aquele inferno , dava-me uma leveza estranha, o que sentia não era felicidade, mas alegria, de partilhar o sofrimento deles em conjunto.. Não havia euforia, exaltação, não me sentia mais sábia, mais elevada. O que crescia dentro de mim era apenas uma serena consciência de existir.
Prado no prado, carvalho debaixo de carvalho, pessoa no meio das pessoas.

quarta-feira, outubro 26, 2005

SETEMBRO

Uma manhã de terça-feira, Setembro, dia 13. Um dia claro e radioso, saudades no meu coração, não da mulher que sou, mas da criança que minha alma alberga até aos fíns dos meus dias.
Minhas fugas solitárias...Um dia claro e radioso. É frequente nesta altura do ano o esplendor do Verão concentrar-se solenemente uma última vez, antes que as cores do Outono comecem a refulgir. As noites arrefecem, o que torna as madrugadas orvalhosas e as manhãs amenas e agradáveis. A folhagem das árvores escureceu, destacando-se contra o céu como que cinzelada. Também na cidade de Lisboa fica mais frio, invade-a uma aragem de luxo e de euforia. Luisa encontrava-se diante da praceta ajardinada do Alto de S. João. Os jardineiros tinham já enchido os canteiros com as primeiras flores do Outono. Num estreito alegrete floria ainda, irrompendo do verde-claro, a cana da India. Sentou-se num banco do jardim, e por momentos sonhou, ou meditou. A bordadura do jardim era interrompida aqui e ali por canteiros redondos donde se erguia um vulto branco em múltiplas estrelas. As flores reluziam à luz do sol. Abelhas e mosquitos zuniam à sua volta. Uma borboleta-almirante às riscas cor do tijolo repousava no seu cálice aveludado onde, de quando em quando, se virava lentamente batendo as asas em ritmo descompassado, como dizendo...Amo-te. Amo-te.
Devia ter vindo de muito longe, a voar por cima dos telhados. Uma outra mais bela veio fazer-lhe companhia. As mariposas começaram então a adejar uma à volta da outra, voando depois em direcção ao azul do céu, como a convidar Luisa a ir também, até desapareceram de vista. Luisa estava no sonho acordada, dos lados da rua lopes, chegavam até ali as vozes límpidas de sua mãe, de seus irmãos. Rapazes apregoavam os jornais de domingo. Os sinos da Igreja da Graça, começaram a repicar. Do portão da Igreja saiu uma mulher de lenço branco, tapando-lhe o rosto. Estas imagens interrouperam a contemplação ociosa em que Luisa se embrenhara. Misturou-se com os transeuntes que confluíam e se voltavam a dispersar à medida que Luisa se afastava. Depois, como alguém a quem fosse indiferente o caminho a tomar, tomou pelo cimitério , caminhando vagorosamente pela ladeira acima. A sombra das casas estava mais fresco, as ruas tinham acabado de ser regadas. A água escorria ainda pelas bermas dos passeios. Essa zona, habitualmente agitada por uma azáfama ruidosa, estava nessa manhã mais sossegada; faltavam os vendedores que, Luisa ouvia quando criança. Nas ruas, mercadejavam peixe, e frutas e verduras, um sem número de desconhecidos tinham vivido, e sofrido e sido felizes ali. E Luisa era então dominada pela sensação de que este prodígio poderia tomar forma de um momento para o outro: por meio de uma escrita, de uma mensagem, de um encontro ou de uma aventura, como é comum acontecer em grutas e jardins encantados.
Estes passeios despertavam nela uma grande ternura. Estava afinada como uma corda de um instrumento em repouso que quaze não precisa de uma mão - uma brisa, um raio de sol bastariam para fazê-la vibrar. As coisa intactas envolviam-na como um clarão, visível mesmo aos olhos mais embotados.
Luisa lembrava-se daquele lugar. Era daquele local que se sentia forasteira, mas nunca deixaria de visitar. Não fazê-lo era o mesmo que abandonar o rio que corria dentro de si.

quarta-feira, outubro 19, 2005

CONFLITO

Sempre pressenti que o tempo do diálogo terminara que, fosse o que fosse que eu dissesse, só poderia haver discussão. Por um lado, tinha medo da minha fragilidade, da inútil perda de forças, por outro, pressentia que o que ele queria, era precisamente o conflito aberto, que a seguir ao primeiro haveria outros, cada vez mais, cada vez mais violentos. Sob as suas palavras sentia fervilhar a energia, uma energia arrogante, prestes a explodir e contida a custos; a forma como eu limava as arestas, a minha indiferença fingida perante os seus ataques obrigavam-me a procurar outros caminhos. Então ameaçava-me de se ir embora, de desaparecer da minha vida sem dar mais notícias. Se calhar estava à espera do desespero, das súplicas humildes de uma condenada. Quando lhe disse que partir seria uma ótima ideia, começou a hesitar, parecia uma serpente que, de cabeça bruscamente erguida, goelas abertas e pronta a ferir, deixa, de súbito, de ver a presa à sua frente. E começou a pactuar, a fazer propostas, propostas diversas e vagas, até ao dia em que, com uma nova segurança, diante da chávena do café, me anunciou: Vou para a América.
Acolhi essa decisão como acolhi as outras, com um interesse simpático. Não queria, sem a sua aprovação, obrigar-me a fazer opções apressadas, que não sentia profundamente. Nas semanas seguintes, continuou a falar-me da ideia da América. Se fores para lá um ano, repetia, obcecado, pelo menos, aprendes uma língua e não perdes tempo.Ficava terrivelmente irritado quando lhe fazia notar que perder tempo não é nada de grave. O máximo da irritação, porém, atingia-o quando lhe disse que a vida não é uma corrida, mas a capacidade de se descobrir o centro. Havia duas chávenas em cima da mesa que, de repente, fez voar, varrendo-as com um braço, depois desatou a chorar. És uma estúpida, dizia , escondendo o rosto com as mãos. És uma estúpida. Não percebes que é isso mesmo que eu quero? Amo-te quero-te só para mim. Durante anos fomos como dois soldados que, depois de terem enterrado uma mina num campo, tomam todas as precauções para não lhe passarem por cima. Sabíamos onde ela estava, como ela era, e passávamos ao lado, fingindo que a coisa a temer era outra. Escondes-te e soluças dizendo-me não percebes nada, nunca perceberás nada.Tive ao longo dos anos de fazer um esforço enorme para não te revelar a minha confusão. Nunca te falei da minha dor.Ou talvez sim, mas em vez de dizeres que não me amas, guarda-lo ciosamente dentro de ti, de outra forma não posso explicar alguns dos teus olhares, certas palavras carregadas de rancor. Da tua mãe parte o vazio , não tens outras recordações: eu estou vivo e preciso de ti. Como podes pensar que tudo me deixa indiferente. Enquanto foste criança, éramos felizes juntos. Tu eras uma miúda muito alegre, mas na tua alegria não havia nada de superfícial, de esperado. Era uma alegria sobre a qual pairava sempre a sombra da reflexão, passavas das gargalhadas para o silêncio com uma facilidade surpreendente. O que é, que estás a pensar? perguntava-te eu então, e tu como se falasses com Deus, respondias-me: Penso se o céu acaba ou se continua em frente, para sempre. Sentia-me orgulhoso por seres assim, a tua pureza e sensibilidade parecia-se com uma Deusa , a minha Deusa. Até onde vai a cadeia das culpas? Até Caim? Será possível que tudo tenha que remontar a tempos tão longínquos? Haverá algo por detrás de tudo isto? O destino é apenas o resultado das acções passadas, e que somos nós, com as nossas mãos, que forjamos o nosso próprio destino. E volto ao ponto de partida. Onde estará a solução de tudo isto. Pergunto-me. Qual será o fio que se doba? Será um fio ou uma cadeia? Poderá cortar-se, partir-se, ou envolve-nos para sempre? Entretanto, quem corta sou eu.

quinta-feira, outubro 13, 2005

SILÊNCIO

Já é tarde, tive de fazer uma pausa. Dei de comer ao Fábio, comi também, arrumei a cozinha. O meu mau estar é desesperante, não gosto de sentir-me assim. A minha couraça inchada não me permite suportar por muito tempo as emoções fortes. Para continuar a escrever, tenho de me distrair, pensar no amor, de retomar fôlego.Quando estou doente, estou mais sensível. Lembranças atacam a minha sensibilidade, tento fugir ocupando minha mente, mas ela mostra-se traiçoeira e não me deixa fugir, onde meu espírito e alma retratam a menina que fui, e a saudade que ficou de minha mãe. Quem sabe, talvez na pequena parte do meu cérebro ainda activa estivesse guardada a nemória de uma época tranquila, e fosse aí que eu me refugiava nestes momentos. Esta pequena lembrança encheu-me de alegria. Nestas alturas agarramo-nos a uma coisa de nada; Lembro quando me sentava no seu colo, e não me cansava de lhe acaiciar a cabeça, de lhe pedir para me contar a história do gato das botas. Vem-me à ideia uma imagem: tinha eu quatro anos, via-a a andar pelo jardim do alto de S.João comigo pela mão, agarrando a minha boneca de trapo preferida. Eu falava com a boneca sem parar. De vez em quando, de um ponto qualquer do relvado, eu ouvia as minhas gargalhadas, uma gargalhada forte, alegre. Se nesse tempo tinha sido feliz, penso eu então, ainda poderei voltar a sê-lo. Para me fazer renascer, é dessa criança que eu tenho medo que ela possa partir. Lembro quando ela estava doente, ajoelhei-me aos pés da cama e comecei a chorar. A mãe partiu, pensava eu, foi fazer uma grande viagem até ao céu. Comia em silêncio, por vezes pegando ao colo minha boneca de trapo, fugia de casa ia até ao jardim. Ficava por muito tempo de pé no relvado, esperando minha mãe, enquanto dizia adeus para as estrelas. Porque não morri. porque não fui atrás dela, porque é que não fiz nada para a deter?Porque eu era uma criança, ficava petrificada com as minhas próprias palavras. Neste momento é urgente esquecer, que não posso dar-me ao luxo de continuar, não quero odiar, parar, meter por um atalho.. Embora tenha guardado muitos segredos durante muitos anos, agora já não é possível fazê-lo. O sîlêncio é mestre

terça-feira, outubro 11, 2005

BUSCA

Despertei esta manhã, após uma noite pouco descansada ( a causa serão as dores de dentes e os soníferos, que me repousam?). Desperto esta manhã, como nunca mais me tinha acontecido, desperto na alegria, convencida de que este mundo esplêndido nos é dado realmente por Deus!...Mas ao cabo de alguns momentos, vem de novo a angústia...Ou se não é de todo a angústia, é uma melancolia cinzenta. Não, não será mesmo angústia, porque a minha angústia é pavorosa, dela morro dez vezes por dia, dela morro cem vezes por dia.Ontem, abracei meu irmão, com um carinho infínito, suavemente, como acariciar sua alma. Para longe, muito longe fugiu o arraial do mundo, o Astro da vida. E fico num estado de pequena angústia ou de ansiedade, a habitual, a que se conhece, a normal. Enquanto escrevo meus olhos deixam passar sem querer algumas lágrimas, e vou pensando..Caminhamos rápidos para o Outono das nossas vidas. Neste mês de Outubro, o tempo tem estado bonito, olho para a rua, Sintra com a sua cerca imensa, e de um esplendor que, paradoxalmente, me tranquiliza e intristece ao mesmo tempo, ou alternadamente, o estado de espírito muda, torna a mudar, depois muda de novo. Esta cerca imensa de Sintra são de um verão da eternidade. Aquela eternidade de que todos participaremos. Depois deixamos de acreditar. Esta paisagem dá desse modo a impressão de ser a prova da ilusão que é este mundo, o meu mundo, o meu universo. O céu volta a dar-me alento. depois , estranhamente, revela-se ainda mais o nada que somos, e que ele descobre aparecendo o contraste com o nosso espírito, a nossa alma.
Depois o que aparece novamente reaparece como luz cintilante, promessa de alegria definitiva, incorruptível, para que uma vez mais se caia na mágoa e na desesperança, e isto, tudo se alterna de um momento para o outro. Não posso firmar-me nem na alegria, no equilíbrio, nem na angústia que esta paisagem do mundo alternadamente me dá. Não consigo prever o que nem como serei de um momento para o outro. Assim será até ao fím. Será de facto assim até ao fím? Instabilidade suprema dos sinais!
Brutalmente, o luminoso recanto do céu, o segundo da paz que me tinha sido dado, que por vezes se pode possuir, desaparece, ensombra-se, a luz divina apaga-se na noite do homem. Num instante busco a esperança em que se possa crer ( estupidamente? ) que o céu ama o homem; que os homens se amam uns aos outros.

Em suma , esta realidade é a minha busca.