quarta-feira, outubro 19, 2005

CONFLITO

Sempre pressenti que o tempo do diálogo terminara que, fosse o que fosse que eu dissesse, só poderia haver discussão. Por um lado, tinha medo da minha fragilidade, da inútil perda de forças, por outro, pressentia que o que ele queria, era precisamente o conflito aberto, que a seguir ao primeiro haveria outros, cada vez mais, cada vez mais violentos. Sob as suas palavras sentia fervilhar a energia, uma energia arrogante, prestes a explodir e contida a custos; a forma como eu limava as arestas, a minha indiferença fingida perante os seus ataques obrigavam-me a procurar outros caminhos. Então ameaçava-me de se ir embora, de desaparecer da minha vida sem dar mais notícias. Se calhar estava à espera do desespero, das súplicas humildes de uma condenada. Quando lhe disse que partir seria uma ótima ideia, começou a hesitar, parecia uma serpente que, de cabeça bruscamente erguida, goelas abertas e pronta a ferir, deixa, de súbito, de ver a presa à sua frente. E começou a pactuar, a fazer propostas, propostas diversas e vagas, até ao dia em que, com uma nova segurança, diante da chávena do café, me anunciou: Vou para a América.
Acolhi essa decisão como acolhi as outras, com um interesse simpático. Não queria, sem a sua aprovação, obrigar-me a fazer opções apressadas, que não sentia profundamente. Nas semanas seguintes, continuou a falar-me da ideia da América. Se fores para lá um ano, repetia, obcecado, pelo menos, aprendes uma língua e não perdes tempo.Ficava terrivelmente irritado quando lhe fazia notar que perder tempo não é nada de grave. O máximo da irritação, porém, atingia-o quando lhe disse que a vida não é uma corrida, mas a capacidade de se descobrir o centro. Havia duas chávenas em cima da mesa que, de repente, fez voar, varrendo-as com um braço, depois desatou a chorar. És uma estúpida, dizia , escondendo o rosto com as mãos. És uma estúpida. Não percebes que é isso mesmo que eu quero? Amo-te quero-te só para mim. Durante anos fomos como dois soldados que, depois de terem enterrado uma mina num campo, tomam todas as precauções para não lhe passarem por cima. Sabíamos onde ela estava, como ela era, e passávamos ao lado, fingindo que a coisa a temer era outra. Escondes-te e soluças dizendo-me não percebes nada, nunca perceberás nada.Tive ao longo dos anos de fazer um esforço enorme para não te revelar a minha confusão. Nunca te falei da minha dor.Ou talvez sim, mas em vez de dizeres que não me amas, guarda-lo ciosamente dentro de ti, de outra forma não posso explicar alguns dos teus olhares, certas palavras carregadas de rancor. Da tua mãe parte o vazio , não tens outras recordações: eu estou vivo e preciso de ti. Como podes pensar que tudo me deixa indiferente. Enquanto foste criança, éramos felizes juntos. Tu eras uma miúda muito alegre, mas na tua alegria não havia nada de superfícial, de esperado. Era uma alegria sobre a qual pairava sempre a sombra da reflexão, passavas das gargalhadas para o silêncio com uma facilidade surpreendente. O que é, que estás a pensar? perguntava-te eu então, e tu como se falasses com Deus, respondias-me: Penso se o céu acaba ou se continua em frente, para sempre. Sentia-me orgulhoso por seres assim, a tua pureza e sensibilidade parecia-se com uma Deusa , a minha Deusa. Até onde vai a cadeia das culpas? Até Caim? Será possível que tudo tenha que remontar a tempos tão longínquos? Haverá algo por detrás de tudo isto? O destino é apenas o resultado das acções passadas, e que somos nós, com as nossas mãos, que forjamos o nosso próprio destino. E volto ao ponto de partida. Onde estará a solução de tudo isto. Pergunto-me. Qual será o fio que se doba? Será um fio ou uma cadeia? Poderá cortar-se, partir-se, ou envolve-nos para sempre? Entretanto, quem corta sou eu.

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