sábado, novembro 12, 2005

FLUTUAR

Porque será que as verdades elementares são as mais difíceis de compreender? Se eu tivesse compreendido que a principal qualidade do amor é a força, talvez tudo se tivesse desenrolado de forma diferente. Mas, para sermos fortes, é preciso gostarmos de nós; para gostarmos de nós, é preciso conhecermo-nos profundamente, saber tudo de nós, mesmo as coisas mais ocultas, mais difíceis de aceitar. Como é possível levar a bom termo um processo deste género, quando a vida com o seu rumor nos vai empurrando para a frente? Só o pode fazer desde o início quem possui dotes extraordinários.
Para o comum dos mortais, para as pessoas como eu, como a Margarida, só resta o destino dos ramos e das garrafas de plástico. De repente, alguém - ou o vento - atira-nos ao leito de um rio, graças à matéria de que fomos feitos, em vez de irmos ao fundo, flutuamos; isso já nos parece uma vitória e, por isso, de repente, começamos a correr; deslizamos velozes para onde a corrente nos arrasta; de vez em quando, um molho de raízes ou uma pedra obrigam-nos a parar; ficamos para ali durante algum tempo, batidas pela água, e depois a água sobe e liberta-nos, e continuamos em frente; quando o curso é tranquilo, vamos à superfície, quando surgem os rápidos, submergimos; não sabemos para onde vamos e nunca ninguém pergunta; nos troços mais calmos, conseguimos ver a paisagem, os diques, os silvados; mais do que os pormenores, vemos as formas, o tipo de cor, vamos demasiado depressa para vermos outras coisas; depois, com o passar do tempo e dos quilómetros, os diques vão ficando mais baixos, o rio vai alargando, ainda há margens, mas por pouco tempo. Para onde vais - perguntamos então a nós proprias e, nesse instante, à nossa frente, abre-se o mar.
Uma grande parte da minha vida foi assim. Mais do que reparar nas coisas, andei às cegas. Com gestos inseguros e confusos, sem elegância nem alegria, consegui apenas flutuar.
Porque escrevo tudo isto? O que signifícarão estas confissões tão longas e tão íntimas? Talvez já esteja farta, talvez tenha folheado uma página após outra, soprando de impaciência. Onde quererei eu chegar, perguntando, para onde isto me leva? É verdade, enquanto escrevo vou divagando, em vez de me meter pela estrada principal, muitas vezes e de propósito enfio-me por carreiros humildes. Dou a impressão que me perdi e talvez não seja uma impressão: perdi-me mesmo. Mas é este o caminho exigido por aquilo que eu tanto procuro : o centro.
Lembra-me de quando no colégio me ensinavam a fazer crepes? Quando os atirava ao ar, diziam-me, tens de pensar em tudo menos na necessidade de eles caírem direitos na frigideira. Se te concentras no voo, podes ter a certeza de que caem enrolados, ou se esborracham em cima do fogão. É ridículo, mas é justamente a distração que conduz ao centro das coisas, ao coração.
Agora, quem tem a palavra não é o meu coração, é o meu estômago. Resmunga e tem razão, porque, entre um crepe e uma viagem ao longo do rio, chegou a hora de jantar. Tenho de te deixar, meu querido Blog. Mas antes de te deixar, deixo-te toda a ternura do mundo.

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