Hoje, quaze me senti uma árvore, porém, eu sei que sou diferente. Desde que desaponta até que morre, está sempre parada no mesmo sítio. As raízes fazem-na estar mais perto do coração da terra do que qualquer outra coisa, a copa fá-la estar mais perto do céu. A linfa corre no seu interior de cima para baixo, de baixo para cima. Expande-se e retrai-se em função da luz do dia. Espera pela chuva, espera pelo sol, espera por uma estação e depois por outra, espera pela morte. Nenhuma das coisas que lhe permitem viver depende da sua vontade. Existe e mais nada. Compreendo agora porque é belo acariciá-la? Pela sua solidez, pela sua respiração tão longa, tão tranquila, tão profunda. Tinha 6 anos, passei uma noite a dormir , num tronco de oliveira. Algures na Bíblia está escrito que Deus tem narinas largas. Embora seja um tanto irreverente, sempre que tentei imaginar uma parecença para o Ser Divino veio-me à ideia a forma de um carvalho.
Na casa da minha infância havia na quinta um, tão grande que eram precisas duas pessoas para lhe abraçar o tronco. Aos quatro ou cinco anos, já gostava muito de ir ter com ele. E lá ficava, sentia a humidade da erva debaixo do traseiro, o vento fresco nos cabelos e na cara. Respirava e sabia que havia uma ordem superior das coisas e que eu estava incluída nessa ordem, juntamente com tudo aquilo que via. Embora não soubesse música, algo cantava dentro de mim.
Não saberia dizer que género de melodia era, não havia um refrão preciso, uma ária. Era mais como se um fole soprasse com um ritmo regular e poderoso na zona próxima do meu coração e esse assobio, espalhando-se pelo interior do meu corpo de criança e na minha mente, produzisse uma grande luz, uma luz que tinha uma dupla natureza: a sua, de luz, e a de música. Sentia-me feliz por existir e, para além dessa felicidade, para mim não existia mais nada.
Pode parecer estranho ou excessivo que uma criança pressinta algo deste género. Infelizmente estamos habituados a considerar a infância como um período de cegueira, de carência, e não como um período em que há muita riqueza. No entanto, bastaria olhar com atenção para os olhos de um recém - nascido para se perceber de que é assim . Alguma vez o fizeram? Quando tiverem oportunidade, experimentem. Pôem de parte os preconceitos e podem observar. Como é o seu olhar? Vazio, inconsciente? Ou antigo, remotíssimo, sábio? As crianças têm naturalmente um fôlego maior, nós, adultos, é que o perdemos e não sabemos aceitá-lo. Aos quatro , cinco anos, eu ainda não sabia nada de religião, de Deus, de todas estas confusões que os homens fazem ao falarem das coisas. Talvez nunca tenha dito, mas fiz os primeiros cinco anos de escola com as freiras, no colégio 28 de Maio , Porto Bradão. Acredito que não foi um prejuízo pequeno para a minha mente já tão instável. Entre os seis e os sete anos, vivi condicionada pelos passos que a bruxa da freira dava. E é inútil dizer que quaze nunca saiu da beira do precipício. Apesar disso, estava sempre prestes a cair. Porquê? Por coisas de nada. Assim começa o Outono com as árvores.
quinta-feira, novembro 17, 2005
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2 comentários:
Melancolia, bebé.! Não gosto de sentir isso em ti. Mas estas muito solta a escrever. Ofereço-me para fazer a revisão de provas. BJ
Lindo, belíssimo texto! Em cada palavra o doce sabor das reminiscências.. Há em sua escrita um pulsar de alma e coração! Adoro-te!
Livia *) Bjim!
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