As orquídias morreram ontem, quando eu não estava, há muitos anos. Era ali que eu brincava, na quinta ao lado da casa, num bocadinho de terra debaixo da figueira achacadiça, onde o ar sufocava e morria. brincava ás lojas: pedrinhas embrulhadas em papel de rebuçado, invólucrus de cigarros cheios e paus, frascos de perfume com água dentro; e o tempo corria a esconder-se no bibe azul, aos quadradinhos , da infância.Fumo de flores secas num fogareiro, as orquídias, o chão ervado, abandono. Não conheço este silêncio, tenho de aprender a brincar outra vez, empurrar a porta e entrar...E de súbito preciso de ti, Maria da luz, na minha memória, no tempo em que o sol andava à nossa roda, e eu já escrevia poemas com os olhos, a olhar a beleza da natureza.
Tinhas oito anos e vestias um avental verde, bonito. Eu tinha seis anos e tinha vergonha de andar descalça. A minha irmã estava distraída a lavar roupa no tanque e nós afastámo-nos um pouco, atrás de borboletas que nem sequer víamos, que eu inventava para me seguires. E muito longe depois ficámos cansadas de correr, sentámo-nos a conversar no meio de um silêncio que nunca existiu, e tudo o que dissemos uma à outra, a minha mão na tua, parecia estar certo . Havia árvores nos teus olhos, uma formiga subia pela tua perna, o teu cabelo ardia às vezes quando te punhas de uma maneira que eu não sei explicar. Deixavas cair de propósito a minha mão no teu colo, e rias, quando despíamos a roupa, e iamos mergulhar no riacho. O avental verde confundiu-se com as ervas e não o encontrámos, vestido de bolinhas com botões de castanhas a sumir-se com as borboletas imaginárias, as tuas cuecas debaixo dos meus pés, e a minha irmã lá ao fundo a espetar os olhos em nós, espantada, com deus na boca, a correr na nossa direcção, e eu a fugir para detrás duma árvore a vê-la vestir-te.Já não sei brincar assim, as orquídias morreram, a casa já não existe. Na minha memória desfilam agora todos os brinquedos da minha vida...mas tu foste, Maria da Luz, o brinquedo mais sério da minha infância.

Guardo para mim, os risos espontâneos e ingénuos, as cores, as brincadeiras, as traquinices, as partilhas, de toda a minha infância...De vez enquando ainda mostro o mesmo sorriso, ainda sinto vontade de me rebolar num campo de margaridas, como tantas vezes fazia...De vez enquando ainda sou aquela criança feliz e sonhadora...De vez enquando...

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