terça-feira, agosto 01, 2006

A casa da minha infância

A casa: duas janelas fechadas, equilíbrio de vidros partidos, reflexos de desolação, um molho de ervas a morder a madeira da porta, folhas de cal a desprenderem-se das paredes, rachaduras.
As orquídias morreram ontem, quando eu não estava, há muitos anos. Era ali que eu brincava, na quinta ao lado da casa, num bocadinho de terra debaixo da figueira achacadiça, onde o ar sufocava e morria. brincava ás lojas: pedrinhas embrulhadas em papel de rebuçado, invólucrus de cigarros cheios e paus, frascos de perfume com água dentro; e o tempo corria a esconder-se no bibe azul, aos quadradinhos , da infância.
Fumo de flores secas num fogareiro, as orquídias, o chão ervado, abandono. Não conheço este silêncio, tenho de aprender a brincar outra vez, empurrar a porta e entrar...E de súbito preciso de ti, Maria da luz, na minha memória, no tempo em que o sol andava à nossa roda, e eu já escrevia poemas com os olhos, a olhar a beleza da natureza. Tinhas oito anos e vestias um avental verde, bonito. Eu tinha seis anos e tinha vergonha de andar descalça. A minha irmã estava distraída a lavar roupa no tanque e nós afastámo-nos um pouco, atrás de borboletas que nem sequer víamos, que eu inventava para me seguires. E muito longe depois ficámos cansadas de correr, sentámo-nos a conversar no meio de um silêncio que nunca existiu, e tudo o que dissemos uma à outra, a minha mão na tua, parecia estar certo . Havia árvores nos teus olhos, uma formiga subia pela tua perna, o teu cabelo ardia às vezes quando te punhas de uma maneira que eu não sei explicar. Deixavas cair de propósito a minha mão no teu colo, e rias, quando despíamos a roupa, e iamos mergulhar no riacho. O avental verde confundiu-se com as ervas e não o encontrámos, vestido de bolinhas com botões de castanhas a sumir-se com as borboletas imaginárias, as tuas cuecas debaixo dos meus pés, e a minha irmã lá ao fundo a espetar os olhos em nós, espantada, com deus na boca, a correr na nossa direcção, e eu a fugir para detrás duma árvore a vê-la vestir-te.
Já não sei brincar assim, as orquídias morreram, a casa já não existe. Na minha memória desfilam agora todos os brinquedos da minha vida...mas tu foste, Maria da Luz, o brinquedo mais sério da minha infância.
Guardo para mim, os risos espontâneos e ingénuos, as cores, as brincadeiras, as traquinices, as partilhas, de toda a minha infância...De vez enquando ainda mostro o mesmo sorriso, ainda sinto vontade de me rebolar num campo de margaridas, como tantas vezes fazia...De vez enquando ainda sou aquela criança feliz e sonhadora...De vez enquando...

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