
Há temas que nem a calendarização permite evitar. E um deles é precisamente o mito de INÊS de Castro. Pensando nela, chegam até mim ecos de várias emoções.
Não sei porquê. Se considerar o mito no seu signifícado mais verdadeiro - o de história sagrada, de história exemplar, de algo que ocorreu num tempo primordial e que narra acontecimentos que se tomam como modelos, difícilmente podemos aplicá-lo ao caso de Inês - Pedro, que é, antes de mais, uma ocorrência histórica devidamente registada e que depois foi alterada e embelezada pela fantasia: há aqui, pois, mais lenda que mito.
Mas ainda que façamos concessões, ainda que queiramos alargar o sentido da palavra mito para nela integrar a linda " INÊS", posta em sossego, eu pergunto-me - e aqui está a razão desta crónica - pergunto-me, dizia, se, na generalidade, é feita a leitura correcta. Porque enfim, mesmo em sentido lato, um mito, para o ser, tem de transmitir um modelo, tem de dizer-nos alguma coisa; portanto, tem de ser lido. Ora, no caso de INÊS DE CASTRO, parece-me que a leitura mais generalizada é do amor entre dois jovens, amor ardente, até ao fím do mundo; amor destruído por uma decisão tirânica e pelo machado sinistro do carrasco. A imagem essencial que nos surge é da jovem, inocente no seu amor, colhendo flores ou sentada junto da célebre fonte de coimbra. Adicionalmente, acrescenta-se-lhe a cena da súplica perante o rei, mostrando-lhe os filhinhos de tenra idade - cena que, é verdade, tem um pathos de tragédia grega.
No entanto não me parece que esteja aí o elemento essencial, o elemento cuja força e signifícado aproximam este episódio histórico de um verdadeiro mito. E para encontrarmos esse elemento teremos de deslocar o centro da gravidade da história, transferindo-o de Inês, sobre a qual sabemos muito pouco (ignoramos, até, se o seu amor era sincero), para Pedro. Porque, quanto a esse, sabemos bem da extensão e da intensidade do seu amor por Inês; sabemos o que ele fez depois da sua morte. E, com essa deslocação do centro de gravidade, aproximamo-nos daquilo que, atrevo-me a pensar, constitui o elemento verdadeiramente relevante e exemplar.
E que é este: apesar do que nos dizem ( magnifícamente) os poetas, o caso Pedro -Inês não é o de um fresco amor adolescente. Bem pelo contrário: é o caso de um amor maduro, que resistiu àquilo a que tantos amores não resistem: o tempo, o hábito e o desgaste.
Quando Inês morreu, os amantes viviam juntos havia, pelo menos, dez anos; e mais: ela já dera a Pedro quatro filhos ( nunca se fala do primeiro, D Afonso, porque morreu à nascença). Ora, uma mulher que engravidara e dera à luz quatro vezes, mormente em pleno século XIV, sem as vantagens da medicina e da cosmética modernas, não podia, de todo ser ainda uma fresca flor salpicada de orvalho. E, no entanto, Pedro continuava a amá-la. Continuou a amá-la toda a vida, apesar das suas aventuras sexuais.
Para mim, é aqui que reside toda a força do caso. Pedro- Inês e também todo o seu signifícado...mítico. O modelo do mito está aqui.
E - sempre na minha modestíssima opinião - a poesia também.